Doente de cidade

EscritaCrônicas

Ainda era bem cedo aquela manhã, o céu noturno ainda não havia sido recortado e não sofrera sua derrota matinal, as trevas ainda dominavam o ar quente daquela manhã de verão.

O carro estava de frente para a rua, abri o portão da garagem com um toque no controle remoto, avancei até atingir o limiar do portão com a calçada, reduzi e olhei para os lados, como de costume. Sairia por um pequeno trecho na contramão, evitando uma volta no quarteirão, delito que àquela hora da manhã não se fazia perceber, já que difícil uma viva alma a circular por aquele pedaço de rua. Dentro do carro já tocava uma rádio qualquer de notícias, mas que logo ficaria mudo para meus ouvidos.

Ao olhar para a esquerda meu coração gelou, avistei um pouco ao longe três faróis, parados na esquina, milhares de memórias sensacionalistas foram despejadas em minhas retinas. Eram três motoqueiros. E numa fração de segundo, eu estava preparado, instintivamente, para fugir ou lutar.

– Roubo ou sequestro? Será que agora é comigo? Não… – Pensei rapidamente.

Acelerei saindo à direita, vi os três faróis vindo em minha direção. Não ouvia mais o rádio. Coração acelerado, corpo agitado. Percebi um deles se aproximando muito rapidamente e aquele preparo se fez agir, acelerei ainda mais e virei logo na esquina, e depois virei a outra esquina, mal vi a lombada, um flash veio à mente! O portão havia ficado aberto, a casa estava sem sua primeira linha de defesa, perigo para a família que ficara ainda dormindo.

Rapidamente um plano se construiu em minha mente. Acabei de fazer um grande contorno e saí pelo lado de baixo da rua. Liguei para quem pudesse atender e pedi que fechasse o portão, passei pela rua alucinado de ódio, a buzina do carro sentiu, e com seus berros alertei para aquela situação que acabara de ocorrer. -Pelo menos alguns vizinhos devem acordar e espantar esses bandidos – pensei.

Ainda agitado segui para o trabalho. A grande distância fermentou aquele sentimento de ódio misturado com desespero que cega, pensando em todas as possibilidades e em todos os noticiários que já havia ouvido sobre crimes.

Chegando ao local de trabalho, ainda mais alucinado de ódio, contei o ocorrido, jurei e esbravejei:

– Como eu queria ter uma arma! Ia estourar os miolos daqueles infelizes! Não se pode trabalhar em paz que sempre tem gente querendo se aproveitar a nossas custas! Malditos!

Certamente meu semblante era de ódio, não conseguia pensar em outra coisa, aquela situação me tirou do eixo, e o sentimento me acompanhou durante todo o dia de trabalho e no retorno para casa.

No dia seguinte novamente saindo de casa, ao olhar para a esquerda, havia apenas um farol na esquina, saí enquanto meu pai fechava o portão, prestei atenção no movimento do motoqueiro, mas ele não saiu do lugar, virei a esquina e não mais o vi. Segui meu trajeto pensando nas diversas possibilidades: estaria ali de tocaia e como saí cinco minutos antes o bando ainda não havia chegado? Estavam aleatoriamente procurando uma vítima? ou viriam atrás de mim? Pensei em comunicar a polícia, mas diria o que? não houve roubo, não vi arma alguma, não houveram relatos de casas ou carros roubados?

No dia seguinte resolvi sair mais tarde e ficar de tocaia para tentar gravar a ação do bando e aí sim poder contatar a polícia. Ficamos então, meu pai e eu no horário habitual, encobertos pelas sombras na garagem de casa, olhando por frestas do portão até que o primeiro farol apontou…

Logo em seguida chegaram os outros dois, percebemos que ficaram próximos uns dos outros, mas não conseguíamos ver quase nada além das luzes dos faróis. Começaram a subir a rua, naquele delito infame que eu não podia reclamar… Começamos a ouvir suas vozes, subiam lentamente… Começamos a gravar, meu pai de um lado do portão e eu do outro. Suas vozes ficaram mais claras ao aproximarem da frente de nossa casa… forçava para ouvir com clareza a conversa, tentando identificar a próxima ação que tomariam, o próximo local ou o carro que abordariam… daí ouvi:

– Cara, tenho só esses quarenta e dois jornais para entregar…

– E eu só essas revistas …

Olhei desconcertado para meu pai, e desacreditando no que via, senti uma mistura de alívio e vergonha! Meu pai ria da minha cara, afinal todo o alarde dos dias anteriores era por causa de entregadores de jornal, que em minha mente viraram uma quadrilha de ladrões ou sequestradores.

Fui trabalhar refletindo aquilo tudo… Na primeira vez o motoqueiro que me seguiu devia só estar tentando me avisar do portão que ficara aberto. Penso agora que a melhor coisa foi não estar armado. Não consigo saber o que faria, talvez atirasse, mas talvez não o fizesse… quem sabe? O medo cega, distorce a realidade, faz de um inocente um bandido e um bandido inocente. O que dizer de tantos sintomas dessa doença não classificada… só pude perceber que estou doente de cidade!

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